A figura do Estado de Necessidade no âmbito
do Direito Administrativo
Como
introdução cabe referir que a figura do estado de necessidade, a possibilidade
de se sair excepcionalmente das regras estabelecidas, com o fim de salvaguardar
um bem precioso protegido pelo Direito, é algo que sempre existiu, tendo sido
assumido historicamente por J. Lemarque, para além de que se manifesta em
diversos ramos do Direito, quer na esfera do Direito Privado, quer na do
Direito Público.
Neste
âmbito e para não nos alongarmos excessivamente, vamos analisar os traços
gerais da figura do estado de necessidade no âmbito do Direito Administrativo,
que é o que especialmente nos importa quanto a esta questão, dado o contributo
decisivo deste ramo do Direito à protecção ambiental e ao Direito do Ambiente.
O
Código do Procedimento Administrativo, consagra esta figura no seu artigo 3.º,
n.º 2. Este artigo valida os actos praticados em estado de necessidade,
garantindo a respectiva indemnização aos administrados, mas exigindo que o
recurso a tal mecanismo constitua o único meio para alcançar o resultado em
questão. É opinião dominante na doutrina que se deve fazer uma interpretação
ampla deste preceito, no sentido de que a possibilidade de desrespeito dos
procedimentos aplicáveis não deve cingir-se apenas as normas do respectivo
Código, mas configurar uma verdadeira excepção aos princípios norteadores da
actividade administrativa.
O
estado de necessidade será assim e na minha opinião uma “legalidade
excepcional” como refere André Gonçalves Pereira[1], fazendo
ainda, por isso, parte do bloco da legalidade. Trata-se de uma actuação
excepcional que pode implicar legitimamente um desvio relativamente às normas
sobre competência, normas sobre formalidades, normas sobre o conteúdo dos actos
e inexecução de sentenças administrativas.
A
identificação da situação de necessidade, nem sempre de determinação fácil,
radica na combinação do elemento fáctico, a situação concreta a analisar,
existência ou não de perigo efectivo, com o elemento teleológico, o fim
colectivo a salvaguardar. Figurando como limite e medida da acção praticada em
estado de necessidade, a devida adequação e proporcionalidade.
Serão
assim pressupostos que originam a verificação do estado de necessidade[2]: a
excepcionalidade da situação, impossibilidade de dar resposta a tal situação
pelos meios normais da Administração; urgência da actuação administrativa,
fundamental a resposta imediata em tempo; e natureza imperiosa do interessa
público a defender, legitimação da actuação administrativa que sacrifica o
princípio estrito da legalidade.
Para
concluir e ainda quanto aos limites impostos à Administração, o princípio da
proporcionalidade, consagrado no artigo 5.º, n.º 2 do CPA, é ele mesmo um
limite à actuação da Administração, nomeadamente, um limite interno da discricionariedade
administrativa, uma vez que constitui uma obrigação desta a prossecução do fim
visado pelo legislador, com o menor sacrifício possível dos interesses
juridicamente tutelados dos particulares.
Este
princípio divide-se tradicionalmente em três subprincípios: o princípio da
adequação traduz-se na apreciação, ainda que em abstracto, se os meios a
utilizar pela Administração são os melhores para a satisfação do fim em causa;
princípio da necessidade, que vem conferir qual a medida do sacrifício das
posições dos particulares para a indispensabilidade do fim a prosseguir pela
Administração. E por fim, o princípio da proporcionalidade em sentido estrito,
que corresponde à noção de equilíbrio entre o sacrifício imposto ao particular
e a vantagem, em função desse sacrifício, alcançada pelo interesse público e
obtida por uma ponderação concreta de valores.
Quanto
à indemnização devida aos administrados, trata-se da responsabilidade da
administração por actos de gestão pública, como resulta do artigo 3.º, n.º 2 do
CPA, de acordo com os termos gerais da responsabilidade extra contratual da
Administração, Lei nº67/2007, de 31 de
Dezembro de 2007.
Trata-se
de um mecanismo de ressarcimento dos particulares pela onerosidade causada pela
conduta pública necessária e urgente, ditada pela necessidade imperiosa de uma
actuação eficaz, a qual visou salvaguardar o interesse colectivo de protecção
ambiental, mas alcançando-o à custa do sacrifício de interesses particulares.
Note-se
que a inobservância dos pressupostos do estado de necessidade, vai fazer com
que a Administração tenha de ressarcir os particulares não por factos lícitos,
mas sim por factos ilícitos.
É
opinião de certos autores como Maria José Rangel de Mesquita[3] e
Freitas do Amaral[4],
que o mero prejuízo não motiva a obrigação de indemnizar, ela é motivada por um
prejuízo “qualificado”, que ultrapasse o habitual e portanto que tenham uma
dimensão significativa.
Para
concluir importa ainda referir a recorribilidade judicial dos actos praticados
em estado de necessidade. Tendo em conta a lesividade desses actos
administrativos, os actos praticados em estado de emergência, são recorríveis[5].
Portanto,
há toda a margem para o particular que não se conforme com o acto praticado
pela Administração, recorrer dessa decisão, nomeadamente por considerar
desproporcional as medidas adoptadas tendo em conta a maior ou menor ameaça ou a
própria lesão do imperioso interesse público a tutelar.
Bibliografia:
Amaral,
Diogo Freitas do
- Direito
Administrativo, Vol III, Lisboa, 1989.
Amaral,
Diogo Freitas do e Garcia, Maria da Glória
-O
Estado de Necessidade e a Urgência em Direito Administrativo in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 59,
Vol. II, Abril de 1999.
Amaral,
Diogo Freitas do; Caupers, João; Claro, João Martins; Raposo, João; Garcia, Maria
da Glória, Vieira, Pedro Siza; Silva, Vasco Pereira da
-Código do Procedimento Administrativo – Anotado, Almedina, Coimbra,
3ª edição, 2001.
Mesquita, Maria José
Rangel
-Responsabilidade do Estado e Demais Entidades Públicas in Perspectivas Constitucionais nos 20 anos
da Constituição de 1976, Vol. II, Coimbra Editora, 1997.
Oliveira, Mário
Esteves de
-Direito Administrativo, Vol. I, Almedina, Lisboa, 1980.
Pereira, André
Gonçalves
-Erro e Ilegalidade do Acto Administrativo
Canas,
Vitalino
-Princípio da Proporcionalidade in Dicionário da Administração Pública, Vol. VI, Lisboa, 1994.
Silva,
Vasco Pereira da
-Em Busca do Acto Administrativo Perdido, Almedina, Coimbra, 1998.
[1]
Em Erro e Ilegalidade no Acto
Administrativo, ob. cit., pág. 75. No mesmo sentido, Esteves de Oliveira,
em Direito Administrativo, Vol I,
Almedina, Lisboa, 1980, cfr., pág. 322.
[2] No
entendimento de Freitas do Amaral e Maria da Glória Garcia, em O Estado de Necessidade e a Urgência em
Direito Administrativo, in Revista da
Ordem dos Advogados, Ano 59, Vol. II, Abril de 1999.
[3]
Maria José Rangel de Mesquita, em Responsabilidade
do Estado e das Entidades Públicas, in Perspectivas
Constitucionais nos 20 anos da Constituição de 1976, Vol. II, Coimbra
Editora, pág. 369.
[4]
Freitas do Amaral, em Direito Administrativo, Vol. III, cfr., pág. 521.
[5] Vasco
Pereira da Silva, em Em busca do Acto
Administrativo Perdido, cfr., págs. 660 e seguintes.
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